11 de dez. de 2012

Clarisse


Aos três anos, Clarisse foi violentada, não foi um estupro, mas teve o mesmo valor. A violência foi prolongada, arrastou-se por muitos anos. E esses anos fizeram com que ela compreendesse o que acontecia, e a deixaram culpada por ter passado por tudo o que passou. Foram lágrimas e mais lágrimas derramadas por uma culpa inexistente, um pecado que ela não havia cometido; mas que o carregaria para o resto da vida.

Será que ele era culpado por tudo o que aconteceu? Era uma pergunta constante, que ela respondia com um “sim” e um “não”, sem chegar ao real objetivo da pergunta. Talvez ele possuísse uma parcela de culpa, já que ele tinha plena consciência de seus atos. Mas ela não poderia culpá-lo, acusá-lo, muito menos odiá-lo. Ele era uma luz, presente em todos os dias da vida dela. Sim, uma luz.

Clarisse pensou – quando ficou mais velha – em beber, usar algum tipo de droga que a deixasse esquecer tudo, pensou em matar-se. Aliás, a morte a acompanhava desde a sua concepção, até que chegasse o dia que as duas se encontrariam. Clarisse e a Morte. Ela morria todos os dias, como todos nós morremos. Só que com ela era diferente, ela conseguia sentir a Vida junto com a Morte; duas companheiras inseparáveis, duas ações necessárias. Clarisse carregou dentro de si um amor pelo mundo, um amor para as pessoas que o mereciam e nunca o abandonou. Ela não usou drogas, nem teve covardia o bastante para se destruir.

Clarisse conseguiu ter a maturidade necessária para superar, uma alma formada para entender e um coração magoado que ela deveria regenerar. Ela possuía uns olhos castanhos profundos, que ninguém jamais interpretou de forma correta; olhos aparentemente felizes, mas por dentro, eram olhos magoados, doloridos por causa das lágrimas carregadas de facas.

Clarisse decidiu voar, e deixou que a chamassem de louca, e que depois a internassem em um hospital psiquiátrico. Não se importaria, voou dentro de si. Ela amou seu corpo imperfeito, suas mãos que já haviam passado por tanto. E seus olhos. Seus olhos que já haviam visto demais, presenciado o que não deveriam, chorado como ninguém. Ela decidiu que amaria alguém, seja lá quem fosse, mas amaria. Clarisse amou um homem de olhos castanhos, quase translúcidos. Ela o amou em segredo, nunca falou sobre, nunca deixou escapar. Ela queria alguém com que pudesse contar e confiar, lembrou-se de si mesma. Lembrou que ela, apenas ela conseguia entender a própria dor, os próprios fatos.

E compreendeu-se. O fato da infância não a acabou, ao contrário, transformou-a no mais encantador dos seres.

Datas, folhas arrancadas de um calendário qualquer. A mais idiota contagem dos dias. Olheiras foram provocadas pelo vício de ler, a melhor droga que já foi encontrada. Unhas afiadas, prontas para uma situação que necessitasse de uma arma cortante. Uma língua afiada de palavras cortantes; mas Clarisse era e ainda é a mulher mais doce que conheci. Ela só não se mostrava, não entregava os pontos, não se deixava levar. Clarisse não me entregou os pontos. Clarisse não me deixou vasculhar a alma dela, não me permitiu que a interpretasse de imediato. Queria deixá-la nua em frente ao espelho e dizer-lhe o quanto era linda. Ela era livre e não corava por qualquer coisa. Sabia que um elogio era um elogio. E ela não limitava-se com sorrisos, argumentava comigo e perguntava o por quê de tal elogio. Clarisse nunca foi simples, era a pessoa mais difícil de se conviver. Ela foi feita para estar só. Sozinha, porém, desejava os abraços de alguém que ela não conhecia, que ela ainda não havia encontrado. O alguém era eu, eu sempre soube. E o alguém também era ela. A Clarisse normal que havia ficado nos espaços entre as estrelas. Ela perdeu a Clarisse simples, vazia, de problemas normais, patricinha e mimada. Clarisse era uma mulher aos 15 anos.

Clarisse nunca morrerá, permanecerá dentro dela e dentro de mim. Clarisse foi minha mulher, minha amiga, meu irmão, meu tio, meu avó. Ela poderia ser o que quisesse. Clarisse parou de respirar aos 75 anos, ao lado da nossa filha e dos nossos netos. As crianças mais inteligentes que ela conseguiu “projetar”. Clarisse ainda está aqui e ainda sou um rapaz idiota que ela fez homem. Ela ainda está olhando além do mar e ainda continuo querendo entendê-la. Era um trauma, cheia de cicatrizes e ela sempre falava: “Deixe-me com minhas cicatrizes, preciso delas.” E ela realmente precisava, ela queria lembrar de tudo o que já havia acontecido; sem mágoas, só com um sorriso de saudade da menina que tinha medo do futuro. Ela amava a mulher que havia se tornado. Clarisse nunca me falou nada, deixou tudo escrito. Disse que eu só deveria ler depois que ela morresse, caso eu desobedecesse, ela me mataria de qualquer forma, tenho quase certeza disso. E eu li tudo, assim que ela falou: “Terei que te deixar.” Mas ela não morreu, eu sei que não; ainda ouço seus passos, ainda amo o cheiro daqueles livros. Ainda sinto a quente respiração de Clarisse ao pé do meu ouvido.

2 comentários:

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