9 de set. de 2013

Siddhartha

P.S.: Texto originalmente publicado no blog Amiga da Leitora.

Sábia mente vazia. Todo conhecimento ao chão, espalhado, destroçado. A alma na estrada, em algum carro antigo; carro comprado pelo menor preço possível, alma liberta pela falta de preço. Cabelos curtos, a falta do dinheiro causando uma magreza frágil, Joni Mitchell no rádio do carro. Uma carteira de cigarro no banco do passageiro. Cigarros só são bonitos se você não acendê-los, por isso, sempre andei com cigarros e sem isqueiros ou fósforos. Estou vivendo a vida que meus ídolos admirariam. Ídolos que morreram por amarem demais o mundo e odiarem eles mesmos. Ídolos, meus ídolos... Pés de barro, pés como os meus. Sem diplomas, sem emprego definido. Quase cheguei ao ponto de vender os únicos trapos que vestia, trapos que nada valiam. Escrevendo contos, dormindo na casa de desconhecidos ou ao relento. Meus pais em uma cidade distante, do outro lado de um oceano sem nome. Meus pais... Será que sentem saudade da ovelha negra da família católica e conservadora? Saí de casa quando completei dezoito anos de idade, depois de deixar toda a minha família escandalizada. Descobriram que eu morava e namorava com dois rapazes. Foi um caos, o caos. De nada adiantou explicar os conceitos do poliamor. Na língua deles, aquilo não passava de falta de vergonha na cara. Eu, extremamente feminista, fazia o que bem entendia, amava quem eu queria, jamais aceitei casar na igreja. Meus pais me amavam e odiavam na mesma medida. Nunca pude mudar o meu eu. Era ser o que minha alma gritava ou matar-me.

Eu, tão sensível e tão incompreendida. Uma faculdade quase terminada, faltando três meses para receber o diploma, tranquei o curso de Jornalismo. Até a escolha dessa profissão enojava meus pais. Eu poderia ser professora, médica, qualquer coisa... menos feliz. Escolhi a liberdade e a solidão. O amor seria para sempre a minha necessidade secundária. Conheci cachoeiras, mares, cavernas e solidões. Conheci rapazes certinhos, idiotas, marombados e hippies. Só os hippies me ensinaram a ser feliz. O primeiro hippie que conheci se chamava Diego. Tinha dezoito anos quando o conheci, ele havia nascido no mesmo dia que eu, na mesma hora, mesma cidade e na mesma maternidade. Ele dizia que éramos cópias, os seres perfeitos que por acaso encontraram-se. Com ele fugi de casa, fugi do país, aprendi meia dúzia de idiomas, fugi de continente, aprendi yoga, magia e meditação; com ele tive meu primeiro filho que morreu antes de completar os nove meses da gestação. Era um menino, chamava-se Siddhartha; nós o enterramos e um lugar desabitado e no túmulo dele plantamos uma árvore. Nosso menino ganharia a vida que perdeu.

Hoje, dez anos depois, estou no lugar onde enterrei meu filho. A árvore é frondosa e inexplicavelmente bela. Siddhartha... Ao enterramos nosso filho, decidimos que era a hora de uma separação. Eu fui para o México, ele foi para algum lugar da América Central. Hoje voltei para o Brasil, a terra que me deu vida. Embaixo das folhas de meu filho fiquei. Permaneci esperando Diego. Doze meses se passaram desde que cheguei, só depois de doze meses Diego chegou. Acabou preso ao ser encontrado sem documentos, mas ali estava ele. Com algumas rugas, rugas adquiridas por sorrir demais. Os longos cabelos estavam menores, os olhos tinham a mesma alegria. Abraçou Siddhartha sem acreditar na mudança dele. Não era uma árvore, era nosso filho. Juntos, passamos quinze dias com nosso filho. Meditamos, comemos os frutos que nosso filho nos dava, rezamos, sorrimos, choramos... Nosso amor ainda estava vivo, assim como nosso filho. Mas, seres que foram destinados a amarem-se para sempre jamais permanecem juntos. Diego beijou meu rosto, eu beijei as mãos dele. Em uníssono nos despedimos.

Mais uma vez saí sem destino. Um pouco angustiada, mas sorrindo. Do outro lado do mundo existia um homem que me amava, um filho que estava preso ao chão com suas raízes. Tudo era perfeitamente estranho. Pela primeira vez acendi um cigarro.

3 comentários:

  1. Excelente, Gleanne! Impressiona-me como vc consegue manter a mesma qualidade na tua escrita mesmo colocando-se em primeira pessoa numa personagem de uma época que tão claramente não é a sua! Fantástico!
    GK

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    1. Obrigada, Gugu! Acho que já deu pra perceber que sou apaixonada por épocas passadas, né? rsrs

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